Males da Crueldade: O que é e como Evitar


"Senhor, fazei-me instrumento da vossa paz. Onde houver ódio, que eu leve o amor."

A crueldade é a disposição consciente de infligir sofrimento, seja por indiferença calculada ou por prazer na dor alheia. A crueldade não é só individual, mas também sistêmica, de toda a sociedade, quando certas formas de crueldade se institucionalizam, criando máquinas de opressão, discriminação e coerção que distorcem a sociedade. 

A crueldade não se limita à violência física: manifesta-se na corrupção que desvia recursos de hospitais, na milícia que escraviza comunidades, na naturalização da imoralidade, no "jeitinho" que naturaliza o mal, na promoção que tenta naturalizar a exploração sexual, da vulgaridade, do consumismo que destrói a saúde e o meio ambiente em nome do lucro.  

1. Como Pecado Moral  

a) Contra a Pessoa Humana  

  1. Extorsão e poder paralelo: Cobrar "propina" para liberar alvarás ou "taxas" para "proteção" de comércios é crueldade econômica. Transforma o direito básico de trabalhar em privilégio de quem paga. "Ai dos que decretam leis injustas [...] para negar justiça aos pobres" (Isaías 10:1-2).  
  2. Tráfico de drogas e despejo cruel: Expulsar famílias de suas casas para dominar territórios é negação do direito sagrado ao lar. O traficante que age assim e o Estado que omite sua responsabilidade compartilham a mesma lógica: o poderoso decide quem merece viver com dignidade e isso é crueldade.
  3. Exploração sexual e lucro imoral: A objetificação de mulheres e crianças (seja no crime, na mídia ou na indústria do entretenimento) é crueldade porque reduz pessoas a mercadorias. A mesma perversão aplica-se a líderes religiosos que vendem "graça" em troca de dízimos extorsivos. ("Transformaram a casa de meu Pai em covil de ladrões" — Mateus 21:13).  

b) Contra a Sociedade  

  1. Corrupção como violência indireta: Desviar verba da saúde ou educação mata mais que muitas armas. É crueldade burocrática: o corrupto não vê o rosto da vítima, mas seu ato a condena à miséria.  
  2. Milícia e Estado falido: Quando o poder público permite que grupos armados substituam suas funções, a crueldade vira moeda de controle. O miliciano que cobra por segurança básica e o político que lava suas mãos são dois lados da mesma moeda.  

2. Como Crime Jurídico (e Falha Civilizatória)  

  1. Escravidão moderna: Trabalhadores em condições análogas à escravidão, seja em lavouras ou em aplicativos de entrega, são vítimas de crueldade econômica. A lei existe, mas a ganância a corrói.  
  2. Omissão estatal: O Estado que não investiga mortes nas favelas, não fiscaliza empreendimentos ilegais de milicianos ou aceita que crianças sejam recrutadas pelo tráfico é cúmplice por negligência.  
  3. Poder paralelo como norma: Nas áreas onde o Estado abdicou de seu papel, a crueldade vira governo informal. O cidadão é refém: paga ao tráfico para não ser morto, à milícia para não ser expulso, ao corrupto para não falir.  
  4. Religião como negócio: Explorar a fé dos vulneráveis é crueldade espiritual. Prometer curas em troca de dinheiro ou usar o púlpito para proteger abusadores corrompe o sagrado.  
  5. A crueldade também habita onde deveria haver luz. Padres e professores, encarregados de guiar almas e mentes, quando omissos ou corruptos, praticam uma violência silenciosa que marca vítimas para sempre. Uma homilia mal preparada não é apenas preguiça – é roubo da palavra que poderia salvar um desesperado. "Ai dos pastores que destroem as ovelhas do meu rebanho!" (Jeremias 23:1). Pior ainda quando o púlpito vira ferramenta de abuso ou enriquecimento: trai-se Deus e apaga-se a luz dos que buscavam saída. Negar o remédio espiritual a quem sofre é crueldade tanto quanto ferir. "Até os cabelos da vossa cabeça estão contados" (Lucas 12:7) – se cada detalhe importa a Deus, como justificar a negligência com almas?

  6. Professores: Crueldade que Rouba Futuros: Um professor omisso não é neutro - é cúmplice do mal. Quando humilha, troca notas por favores ou aceita que alunos passem sem aprender, perpetua a miséria e isso é crueldade. O inferno começa quando quem deveria iluminar prefere apagar.

  7. A crueldade entre adolescentes urbanos não surge do nada, mas emerge de uma complexa teia de fatores psicossociais que refletem desafios estruturais profundos. Estudos revelam que a exposição repetida à violência, o estresse ambiental e a fragmentação social podem criar mecanismos de sobrevivência psicológica que, paradoxalmente, podem manifestar-se como comportamentos agressivos. Compreender essa dinâmica significa reconhecer que a crueldade é menos um problema individual e mais um sintoma de desigualdades sistêmicas que precisam ser transformadas através de apoio comunitário, educação, saúde mental e políticas que promovam ambientes seguros e acolhedores para jovens. A fome, o desemprego e a falta de oportunidades de educação e inserção social, a violência de áreas carentes são crueldades que afetam não só quem vive nessas áreas de nossa cidade, mas que atingem a todos e se não queremos compartilhar com essa forma de crueldade devemos agir para mudar essa realidade.

"Purificai-me, Senhor, pelo vosso Amor" (Liturgia das Horas)


EXAME DE CONSCIÊNCIA SOBRE CRUELDADE COTIDIANA


1. CRUELDADE NA FAMÍLIA
Humilhei meu filho(a) por não entender uma tarefa?
Zombei das dificuldades emocionais de alguém da família?
Ignorei de propósito um parente que precisava de ajuda?
Usei silêncio ou frieza como castigo (sem explicação justa)?
Comparei um filho a outro para provocar ciúmes ou inferioridade?

2. CRUELDADE SOCIAL
Fiz piada racista, classista ou homofóbica (mesmo que "entre amigos")?
Virei o rosto para um mendigo como se ele não existisse?
Ameacei alguém (mesmo que "de brincadeira") para demonstrar poder?
Espalhei fofoca que poderia prejudicar a reputação de alguém?
Deixei de denunciar um abuso por medo ou comodidade?

3. CRUELDADE INSTITUCIONAL
Subornei ou "aceitei um jeitinho" para beneficiar meu negócio?
Fingi que não vi um colega assediando alguém no trabalho?
Votei em candidatos que defendem violência contra grupos vulneráveis?
Explorei um empregado doméstico com salário abaixo do justo?
Desviei recursos públicos (mesmo que "só uma caneta")?

4. CRUELDADE POR OMISSÃO
Deixei de ajudar um animal machucado na rua?
Sabia que uma criança era abusada e não denunciei?
Não me preparei para uma aula/homilia, deixando outros sem orientação?
Ignorei um idoso solitário quando podia visitá-lo?
Fingi que não ouvi um pedido de socorro?

5. CRUELDADE ESPIRITUAL
Usei a Bíblia ou doutrina para condenar, nunca para consolar?
Cobrei dinheiro em troca de "oração poderosa"?
Julguei alguém em confissão sem ouvir sua dor?
Deixei de denunciar um líder religioso corrupto por "lealdade"?
Tratei fiéis como "clientes" em vez de irmãos?

Santo Agostinho, tanto em seu Comentário ao Evangelho de João quanto em A Cidade de Deus, explora a ideia de que o pecado carrega em si mesmo seu próprio castigo. A frase "Qui facit iniquitatem, jam torquetur" ("Quem comete iniquidade já está atormentado") resume sua visão de que a própria injustiça é um tormento para a alma de quem comete a crueldade, pois a afasta da paz que vem de Deus.  

Em A Cidade de Deus (XIV,25), Agostinho aprofunda essa noção ao citar Isaías 57:20-21, onde os ímpios são comparados a um mar agitado, incapaz de repouso, lançando continuamente lama e lodo. Ele argumenta que a desordem interior do pecador — sua inquietação, luxúria e egoísmo — é já uma forma de punição, pois o afasta da verdadeira felicidade, que só se encontra em Deus. Para Agostinho, a "paz" prometida aos justos não é simplesmente a ausência de conflitos externos, mas a harmonia da alma ordenada segundo a vontade divina.  

Assim, o tormento do pecador não é apenas uma consequência futura (como o inferno), mas uma realidade presente: a própria vida desregrada é um estado de miséria espiritual. Essa ideia está alinhada com sua teologia da graça, que ensina que o coração humano só encontra descanso quando repousa em Deus ("Fecisti nos ad te, Domine, et inquietum est cor nostrum donec requiescat in te" — Confissões, I,1).  

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